Nadja Vãduva (excerto)

"Os miúdos da vizinhança, sempre que a viam passar, corriam para ela para que lhes tirasse retratos. As meninas gostavam de posar para ela como futuras modelos, enquanto os rapazes preferiam exibir as suas manobras de skate. Já o fazia há algum tempo. Um dia surpreendeu a dona do supermercado lá da rua com uma colecção de fotos do seu filho. Ao folhear o álbum, a senhora assistiu às várias metamorfoses do seu bebé rechonchudo até à sua transformação num esquálido mas vivaz rapaz de onze anos. Foi ele que lhe sugeriu que fotografasse o interior da fábrica do Alemão, uma velha fábrica de cortiça que devia o nome à origem do seu fundador. O rumor de que teria sido um nazi em fuga após a capitulação do Terceiro Reich ainda persistia, embora, na verdade, tivesse nascido no pós-guerra e, por ironia, filho de um casal de refugiados judeus. Os edifícios que faziam parte do complexo fabril estavam em ruínas, praticamente só restavam as fachadas. A vegetação selvagem cobria os caminhos percorridos por milhares de operários ao longo das três décadas em que a fábrica estivera em funcionamento. As máquinas abandonadas pareciam ter sido tomadas pela Natureza, oferecendo o espectáculo de uma estranha fusão entre o mineral e o vegetal. O que mais a impressionou no edifício central, a maior das estruturas, foi o facto de o chão estar pejado de discos de música clássica. Pensou que as capas estivessem vazias, mas ao pegar numa que tinha o rosto irado de Beethoven estampado, sentiu nitidamente a rodela. Descortinou pedaços irregulares de vinil partido espalhados pelo chão, supondo que o miúdo do supermercado e os seus amigos deviam divertir-se a lançá-los pelo ar e a vê-los desintegrarem-se contra as paredes. Caminhou sobre Mozart, Chopin, Wagner, Bartók, Brahms e Strauss como se estivesse no interior de uma obra conceptual imaginada por um artista obscuro de nome impronunciável, registando a cada passo a inusitada instalação sob vários ângulos e perspectivas. Tentava conceber o porquê e o como de tão bizarro armazenamento. Seriam stocks acumulados de discos invendáveis após o advento do compact disc, uma colecção particular gigantesca herdada por alguém que não gostava de música clássica? Teriam sido trazido aos poucos ou de uma só virada? Que tipo de logística teria estado envolvida em tal empresa? Abandonou a fábrica ao anoitecer, considerando a hipótese de nunca vir a revelar aquelas fotografias. Se lhe perguntassem o motivo de tal consideração, talvez não soubesse o que responder. Não teria palavras para descrevê-lo, pelo menos não tão cabalmente quanto as próprias imagens."

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