Excerto do conto 'O Longo Caminho de Regresso'


          Vestiu o casaco, trancou o carro e iniciou a caminhada, com uma mão no bolso, a outra a segurar o cigarro. Ainda tinha frio. Eram dez e meia da noite, e White Chapel estava a dormir ou aninhada no sofá a ver a telenovela ou o futebol. Daqui e dali, vindo das lojas dos animais, ouvia-se o som de badalos e um ou outro balido. Ao longe, dois ou mais cães latiam em coro. Avançou pela rua central, cruzando-se com gatos, sapos e morcegos, descrevendo ziguezagues de modo a evitar as bostas de vaca e as caganitas de ovelha. As gentes da aldeia eram gentes madrugadoras e deitavam-se cedo, mas sabia que o pai estava acordado e, de acordo com o que ele lhe contara ao telefone, à mesa da cozinha, ouvindo rádio e a fazer palavras cruzadas. A casa número 66 estava mais degradada do que aquela de que se lembrava. Viu-se diante do pequeno portão gradeado, por trás do qual se subia um lance de escadas para se aceder à varanda em forma de cotovelo que rodeava a casa, conduzindo à porta da cozinha. Costumava trepar por cima do portão quando era criança. Depois de se certificar de que não estava a ser observado, assim, vestido de preto, a entrar furtivamente numa casa, pôs à prova a sua agilidade. Não era igual à que tinha aos dez anos, mas agora tinha a vantagem de ter mais sessenta centímetros do que então. A porta da frente quase nunca era utilizada. Que se lembrasse, só se abria na Páscoa, para receber o padre que ia pela aldeia abençoando as casas e aliviando as carteiras dos aldeões em nome do Senhor. A luz emanada da janela da cozinha esbarrava numa muralha de escuridão que escondia o piso inferior onde estavam as lojas dos animais e o lagar. Do rádio, escorria uma balada xaroposa que ofendia os seus ouvidos de melómano. Respirou fundo, tentando parar os tremores, e bateu à porta. Ouviu o arrastar de uma cadeira, e, por detrás da cortina, surgiu o rosto do pai. Quando abriu a porta, a sua expressão revelava uma mistura de surpresa e incerteza.
          – Tony? És tu, rapaz?

Sem comentários:

Enviar um comentário