Memória e Ficção


     Certas escolas de escrita dizem que devemos escrever sobre aquilo que conhecemos. Outras, pelo contrário, aconselham alguma prudência antes de nos abalançarmos a escrever sobre nós mesmos e a nossa vida. Seja como for, a experiência, a personalidade e a localização espácio-temporal do escritor permeia a sua obra com maior ou menor subtileza, por mais desfasada que esta esteja da realidade, seja ele autor de fantasias medievais ou de distopias futuristas. Para mim, a literatura é, ao mesmo tempo, escape de e confronto com a realidade: afasta-me e aproxima-me dos meus maiores receios, ajudando-me a pô-los em perspectiva. 

     No conto que dá nome ao livro O longo caminho de regresso, existem vários pontos de contacto entre as biografias do personagem Tony Dornbusch e do homem por trás do nom de plume António Bizarro. Exagerando aqui, omitindo ali, criei um outro Eu e ficcionei alguns aspectos da minha vida. Por exemplo, o consumo moderado de álcool de Bizarro tem como corolário o alcoolismo de Dornbusch, enquanto certas fobias e ansiedades, que não afectam grandemente o funcionamento normal do criador, são patologias controladas com medicação no caso da criatura. Para além disso, Dornbusch conduz o carro preferido de Bizarro (um Alfa Romeo Sprint 1.7 Quadriflogio Verde), enquanto Bizarro nem carta de condução tem. Esquecendo as diferenças, ambos foram abandonados por um pai acometido por uma espécie de desagregação psicológica e mental. Mas enquanto Dornbusch conseguiu obter uma resposta (a expressão inglesa closure seria a mais adequada), Bizarro foi informado da morte do pai sem ter tido a oportunidade de questioná-lo. Dornbusch encetou o seu longo caminho de regresso a casa ciente de que a sua vida não teria sido a mesma tivesse o seu pai escolhido permanecer em Saint Paul junto da família. Recebeu mais do pai ausente do que alguma vez teria recebido com a sua presença. Já Bizarro não pode afirmar o mesmo: o autor regressou a casa vindo de um funeral, sem que nenhuma explicação lhe tivesse sido dada. Através de Dornbusch (vicariously), Bizarro enfrentou o pai, invertendo o processo de demonização a que o votara ao longo dos anos, e caracterizou-o quase como um herói trágico, dando por si, no fim, a perdoá-lo. 

     Houve a necessidade de escrever esta história desta maneira em particular, mas apenas quando a realidade se encarregou de me fornecer a peça que faltava para completar o puzzle: as sucessivas notícias que aparecem ciclicamente acerca de homens que massacram as suas famílias. Não sei como nem porquê terá sido feita esta associação de ideias entre um homem que abandona a família e outro que enlouquece ao ponto de matar mulher e filhos. Mal comparado, existe uma fragmentação do modelo tradicional de família, embora no primeiro caso o resultado seja o surgimento de uma família monoparental e não a sua destruição total. A razão talvez resida no facto de que, ao se imaginar algo de muito pior, aquilo que existe presentemente não nos pareça assim tão mau.

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