Shadow percorreu os corredores vazios da antiga
catedral de consumo, esmagando os vidros com o cardado das suas botas,
lembrando-se de quando o edifício ainda fervilhava de actividade, e ele e a sua
então namorada, Emily, iam espreitar a livraria antes de irem ao cinema.
Recordou-se da noite em que a conheceu, dos seus olhares recriminadores
e modos bruscos enquanto lhe aplicava os curativos no pescoço e no braço.
— Acha que fiquei assim numa luta de gangs,
Doutora? — perguntou ele, sarcástico. — Pode perguntar ali ao polícia que me
trouxe o que aconteceu...
Ele já achava normal, por mais bizarro que isso fosse, que as pessoas
julgassem que um jovem negro de aspecto possante só pudesse ser atleta
profissional, porteiro de discoteca ou criminoso. Que uma mulher como ela
julgasse o mesmo deixava-o zangado. Emily olhou para ele, como se o estivesse a
ver pela primeira vez desde que dera entrada nas Urgências, e as linhas do seu
rosto suavizaram-se.
— Por que não me conta o senhor o que se passou?
— Pode tratar-me por ***.
Antes de Shadow se ir embora, Emily recomendou-lhe que passasse por lá
daí a uns dias para mudar os pensos e ver se não havia sinais de infecção.
Ao cruzar-se com uma loja de brinquedos, avançou alguns anos até se ver
à porta do quarto de Nuala, a observar Emily com uma mão na sua testa e a outra
na testa da filha, tentando perceber se ela estava com febre. Deixou-se cair de
joelhos, sentindo que era agora que ia quebrar, por fim, e que desta vez nada o
impediria de enfiar o cano da arma na boca e de premir o gatilho. O momento de
fraqueza foi momentâneo, como sempre. Fungou do nariz, limpou as poucas
lágrimas que haviam conseguido escapar dos seus olhos, e sacudiu aquela
sensação horrível com uma cuspidela para o chão.
Sem comentários:
Enviar um comentário